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:: quarta-feira, fevereiro 20, 2002 ::
Zé da Silva
É um brasileiro médio que difere da média dos brasileiros. Assalariado e arrochado, não vê aumento há seis anos e meio. Mas Zé da Silva possui talão de cheques. Cada vez que assina um deles, paga a Contribuição Provisória por Movimentação Financeira, a CPMF, teoricamente destinada a melhorar a saúde da nação.
Na verdade, a contribuição é tão provisória quanto as medidas provisórias editadas permanentemente pelo governo. Fala-se, agora, em estender a CPMF até 2003. Como ninguém reage, a turma de Brasília age.
De Zé da Silva em Zé da Silva, o governo confisca, por ano, R$ 18 bilhões do bolso dos brasileiros. Collor adotou o tratamento de choque ao confiscar poupanças. FHC prefere medidas homeopáticas. Zé da Silva fica mais pobre todo dia, o país idem, mas o governo jura que o futuro ao Brasil pertence.
O atoleiro cambial
De janeiro a junho, o dólar criou asas e decolou, enquanto o real perdeu 24,2% de seu valor. Se Zé da Silva tivesse dívidas em dólar, passaria a dever 24,2% a mais. O Brasil, que tem sua economia atrelada ao dólar, ficou R$ 105,5 bilhões mais pobre. Perdeu, em seis meses, seis anos de CPMF. Cheque assinado pelo ministro Malan e confiscado pelo FMI.
Traduzido em recursos administrativos, o país perdeu hospitais, proibiu
internações, cancelou cirurgias, vetou exames, esvaziou campanhas
preventivas, matou pacientes. Sem choro nem vela.
Zé da Silva mantém um gráfico, riscado a giz vermelho, na parede do quarto alugado em que mora. Sabe que os parcos reais que traz no bolso valem, agora, 24,2% a menos. Subiu no banquinho que lhe serve de criado-mudo e marcou o pico da dívida e(x)terna brasileira: US$ 215,3 bilhões. Quase metade de toda a riqueza existente no país, bens e serviços, simbolizada na sigla PIB Produto Interno Bruto. Hoje, orçado em US$ 500 bilhões.
Zé da Silva gravou do lado, com giz amarelo, a dívida interna do país: R$ 596,7 bilhões. Traduzida em dólares pela cotação de 13 de junho, equivale a US$ 246,5 bilhões. Somou as duas faces da dívida pública, a externa e a interna. Deu US$ 461,8 bilhões. Subtraiu do valor do PIB. Sobraram US$ 38,2 bilhões. É tudo que o governo FHC deixaria no caixa nacional se saldasse toda a dívida. Uma declaração de falência e incompetência.
Zé da Silva está doente. Não sabe se de febre amarela, tuberculose ou dengue. Sabe apenas que é uma dessas doenças que, oficialmente, o Brasil
havia erradicado de seu prontuário médico desde os anos 60. Mas que o
governo FHC trouxe de volta. Não por gostar de doenças, mas por
menosprezar saúde da nação.
Fuçador, Zé da Silva descobriu que, no orçamento federal deste ano, a verba para a saúde é de R$ 21,5 bilhões. Sentado no banquinho de seu quarto, Zé da Silva calculou a dívida externa em reais. Concluiu que ela saltou, nos primeiros seis meses do ano, de R$ 421,5 bilhões para R$ 521 bilhões. A diferença daria para financiar a saúde por quase cinco anos.
Filósofo, Zé da Silva ergueu na mente uma indagação metafísica: por
que o governo não tem dinheiro para investir, mas tem para perder?
Dragão da inflação
Zé da Silva sabe que 23% da dívida do governo federal no mercado interno estão ancorados na variação cambial. Sobe o dólar , sobe a dívida. Em janeiro de 1999, quando FHC divorciou o real do dólar, pondo fim à lua-de-mel entre as duas moedas, inúmeras empresas quebraram. As importações ficaram mais caras. Agora, prevenidas, as empresas compram dólar no mercado para fazer caixa. Não confiam na política cambial do governo.
A alta do dólar acorda o dragão da inflação, que andava adormecido sob a cama de Zé da Silva. Sobe o dólar, sobem os preços dos combustíveis, as tarifas de energia elétrica e telefones, os medicamentos, o pãozinho do
café da manhã e tudo o que contém trigo. Quase 80% do trigo consumido no Brasil é importado.
Longe da pensão em que mora Zé da Silva, o ministro Malan, sensível aos números, tenta domar o dragão erguendo o chicote do aumento da taxa de
juros. Com juros tão elevados quanto a pressão arterial de Zé da Silva,
ficam mais caros os financiamentos para investimentos e consumo. O
ministro doma o dragão, segura a inflação, mas não o balão da dívida pública.
Em dezembro de 1999, ela era de R$ 516,5 bilhões. Um ano depois, R$ 563,1
bilhões. Agora, R$ 596,7 bilhões.
Cansado dos males do governo, Zé da Silva quer saber como se safa a economia do setor privado. De janeiro a junho, a conta da desvalorização
do real, instado à anorexia compulsória, pousou na mesa do setor privado,
cuja dívida pulou de R$ 208,3 bilhões para R$ 261,1 bilhões. Após erguer o
& gt;guardanapo à boca e tossir constrangido, o setor privado sutilmente
empurrou a conta para a mesa do governo. Como fez em janeiro de 1999,
captando, via bancos Marka e FonteCindam, a bagatela de R$ 1,6 bilhão.
À medida que o real se desvaloriza, o mesmo acontece com o país. É
isso que angustia Zé da Silva. As ações ficam mais baratas para o
investidor estrangeiro. E o Brasil vai sendo comprado, fatia a fatia,
deixando Zé da Silva mais desolado.
Eleições 2002
Zé da Silva já pensa nas eleições do ano que vem. Desta vez, jura para si mesmo que vai deixar de ser bobo e votar no mais falante e mais elegante. Tem medo de repetir a do se e eleger o mais farsante.
No radinho de pilha que traz colado à orelha, Zé da Silva ouviu o ministro Malan ditar a pauta dos futuros candidatos a presidente da República. O novo presidente terá de respeitar as restrições orçamentárias do setor público. Malan repetiu o que o FMI ditou. Traduzindo do economês, o governo brasileiro está proibido de gastar. E tanto deixou de gastar que não investiu no setor energético. Anda agora em meio às trevas, enxergando
um túnel no fim da luz.
Como o burro da fábula, o Brasil aprende com os economistas efemizados a viver sem comer. Agora, a falta de salário e de luz. Amanhã, de água. Dentro em pouco, rodízio diário de narinas para economizar oxigênio. Zé da Silva já treina com um pegador de roupa. Fecha a narina direita nos dias pares e a esquerda nos ímpares. A questão é saber se o burro do brasileiro vai sobreviver quando aprender a deixar de comer.
Zé da Silva observa os gráficos na parede de seu quarto. Confere que a dívida federal, em títulos, era de R$ 61,8 bilhões quando FHC tomou posse em 1995. Em abril deste ano, estava em R$ 553,9 bilhões. Inferior a 30% do PIB no primeiro mandato, subiu para 50% do PIB atual.
Ora, pergunta-se Zé da Silva, como o Brasil pode dever tanto se andou vendendo empresas estatais para diminuir o peso da dívida? Cadê o dinheiro das privatizações? Este é um mistério que Zé da Silva não consegue >decifrar. Como não logra entender essa cara de austeridade do ministro Malan, vestindo um terno de bolsos furados, de tanto endividar o setor público.
(publicado no Informativo Rede de Cristãos, em 12/07/2001
:: Christopher 1:52 da manhã [+] ::
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:: terça-feira, fevereiro 19, 2002 ::
Pierre Bourdieu (1930-2002): conversa com sindicalistas
Do "Le Monde Diplomatique"
Em Atenas, num encontro com sindicalistas e pesquisadores, Pierre Bourdieu fez seu último discurso público. Um dos mais importantes intelectuais franceses - e mundiais - Bourdieu foi sempre polêmico: "não há democracia sem contra-poder crítico", dizia.
Se hoje é importante, senão necessário, que pesquisadores independentes se juntem ao movimento social, é porque estamos diante de uma política de globalização (eu disse exatamente isso: uma "política de globalização"; não falo de "globalização" como se isso significasse um processo natural). A produção e a difusão dessa política são, em grande parte, mantidas em segredo. E já constitui todo um trabalho de pesquisa, que é necessário, descobrir tal política antes que comece a ser aplicada.
Ela também tem efeitos que podem ser previstos graças aos recursos das ciências sociais, mas que, em curto prazo, ainda são invisíveis para a maioria das pessoas. Outra característica sua: é produzida, em parte, por pesquisadores. A questão é saber se aqueles que antecipam, a partir de seu saber científico, as conseqüências funestas dessa política, podem e devem guardar silêncio. Ou se não há nisso uma espécie de não-assistência a pessoas em perigo. Se for verdade que o planeta está ameaçado por calamidades graves, os que crêem saber, de modo antecipado, dessas calamidades, não teriam o dever de sair da discrição que, tradicionalmente, os cientistas se impõem?
Na cabeça da maioria das pessoas cultas, sobretudo em ciências sociais, existe uma dicotomia que me parece absolutamente funesta: a dicotomia entre scholarship e commitment - entre os que se dedicam ao trabalho científico feito segundo métodos científicos, e destinado a outros cientistas, e os que se engajam e levam seu saber para fora. A oposição é artificial e é preciso ser, de fato, um cientista autônomo que trabalhe segundo as regras do scholarship para poder produzir um saber engajado, isto é, um scholarship with commitment.
É necessário, para ser um verdadeiro cientista engajado, legitimamente engajado, engajar um saber. E só se adquire tal saber no trabalho científico, submetido às regras da comunidade científica.
Duplamente sábios
Em outros termos, é necessário destruir um certo número de oposições que estão em nossas cabeças e que são formas de permitir omissões: a começar pela omissão do intelectual que se isola em sua torre de marfim. A dicotomia entre scholarship e commitment tranqüiliza o pesquisador em sua boa consciência porque ele tem a aprovação da comunidade científica. É como se os cientistas acreditassem ser duplamente sábios porque não fazem nada com sua ciência.
Porém, quando se trata de biólogos, isso pode ser criminoso. Mas também é grave quando se trata de criminologistas. Essa discrição, essa fuga na pureza, tem sérias conseqüências sociais. Pessoas como eu, pagas pelo Estado para fazer pesquisa, deveriam guardar cuidadosamente os resultados de suas pesquisas para os colegas? É absolutamente fundamental dar prioridade à crítica dos colegas sobre o que se acredita ser uma descoberta, mas por que reservar para eles o saber coletivamente adquirido e controlado?
Parece-me que, hoje, o pesquisador não tem escolha: se está convencido de que há uma correlação entre as políticas neoliberais e as taxas de delinqüência, uma correlação entre as políticas neoliberais e as taxas de criminalidade, uma correlação entre as políticas neoliberais e todos os índices daquilo que Dürkheim teria chamado de anomia, como poderia deixar de dizê-lo? Não só não há como criticá-lo, como deveria ser felicitado por essa atitude. (Talvez eu esteja fazendo uma apologia de minha própria posição...).
Nem profeta nem sábio
Mas, o que vai fazer o pesquisador no movimento social? Primeiro, não vai dar aulas - como faziam alguns intelectuais orgânicos que, não sendo capazes de impor suas mercadorias no mercado científico, onde a concorrência é dura, iam dar uma de intelectuais junto aos não-intelectuais dizendo que o intelectual não existia.
O pesquisador não é um profeta, nem um sábio. Deve inventar um papel novo que é muito difícil: deve ouvir, deve buscar e inventar; deve tentar ajudar os organismos que têm por missão - cada vez menos convictos, infelizmente, inclusive os sindicatos - resistir à política neoliberal; deve atribuir-se a tarefa de ajudá-los fornecendo-lhes instrumentos. Em particular, instrumentos contra o efeito simbólico que exercem os "especialistas" contratados pelas grandes empresas multinacionais.
É necessário dar nome aos bois. Por exemplo, a atual política de educação é decidida pela Unice, pelo Transatlantic Institute, etc. Basta ler o relatório da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre os serviços para se conhecer a política da educação que teremos dentro de cinco anos. O Ministério da Educação limita-se a transmitir essas instruções elaboradas por juristas, sociólogos, economistas, e que, uma vez revestidas da forma jurídica, começam a funcionar.
Os pesquisadores também podem fazer uma coisa mais nova, mais difícil: incentivar o surgimento das condições organizacionais da produção coletiva da intenção de criar um projeto político e, em segundo lugar, as condições organizacionais para o êxito da invenção desse projeto que, evidentemente, será um projeto coletivo. Afinal, a Assembléia Constituinte de 1789 e a Assembléia da Filadélfia eram formadas por pessoas como vocês e eu, que tinham uma bagagem jurídica, que haviam lido Montesquieu e que inventaram estruturas democráticas.
Do mesmo modo, hoje é necessário inventar coisas. É evidente que se poderá dizer: "há parlamentos, há uma confederação européia dos sindicatos, há todo tipo de instituições que supostamente o irão fazer." Não vou, aqui, demonstrar isso, mas ocorre que eles não o fazem. É preciso, pois, criar as condições favoráveis para essa invenção. É preciso ajudar a vencer os obstáculos a essa invenção; obstáculos que, em parte, estão no movimento social encarregado de suprimi-los - e, particularmente, nos sindicatos.
Por que se pode ser otimista? Penso que se pode falar de boas chances de sucesso, que esse momento é o kairos, o momento oportuno. Quando fazíamos esse discurso, por volta de 1995, tínhamos em comum não ser ouvidos e passar por loucos. As pessoas que, como Cassandra, anunciavam catástrofes eram ridicularizadas, atacadas pelos jornalistas e insultadas. Hoje o são um pouco menos. Por quê? Porque se trabalhou. Houve Seattle e várias manifestações.
E, também, as conseqüências da política neoliberal - que havíamos previsto abstratamente - começam a ser vistas. E as pessoas, agora, compreendem. Mesmo os jornalistas mais limitados e mais teimosos sabem que uma empresa que não tem um lucro de 15% parte para as demissões. As profecias mais catastróficas dos profetas da desgraça (que, simplesmente, eram mais informados que os outros) começam a se realizar.
Não é cedo demais. Mas também não é muito tarde. Porque é apenas um começo, pois as catástrofes só estão começando. Ainda é tempo de sacudir os governos social-democratas, para os quais os intelectuais olham encantados, principalmente quando deles recebem vantagens sociais de todo tipo.
"Sindicalismofobia"
Um movimento social europeu, a meu ver, só tem chance de ser eficaz se reunir três componentes: sindicatos, movimento social e pesquisadores - com a condição, evidentemente, de integrá-los, e não apenas justapô-los. Eu dizia aos sindicalistas que há, entre os movimentos sociais e os sindicatos em todos os países da Europa, uma profunda diferença quanto aos conteúdos e, ao mesmo tempo, quanto aos meios de ação.
Os movimentos sociais fizeram ressurgir objetivos políticos que os sindicatos e os partidos haviam abandonado, ou esquecido, ou rechaçado. Por outro lado, os movimentos sociais trouxeram métodos de ação que os sindicatos pouco a pouco, mais uma vez, esqueceram, ignoraram ou rechaçaram. E, em particular, métodos de ação pessoal: as ações dos movimentos sociais recorrem à eficácia simbólica, uma eficácia simbólica que depende, em parte, do engajamento pessoal dos que protestam; um engajamento pessoal que é também um engajamento corporal.
É necessário correr riscos. Não se trata de desfilar de braços dados, como tradicionalmente fazem os sindicalistas no dia 1° de maio. É preciso agir, ocupar locais de trabalho etc. O que exige, ao mesmo tempo, imaginação e coragem. Mas vou dizer também: "Cuidado, nada de 'sindicalismofobia'. Há uma lógica dos aparelhos sindicais que é preciso entender."
Por que é que digo aos sindicalistas coisas que são próximas do ponto de vista dos movimentos sociais sobre eles, e por que vou dizer aos movimentos sociais coisas que são próximas da visão que os sindicalistas têm deles? Porque é com a condição de que cada um dos grupos veja a si mesmo como vê os outros que será possível superar as divisões que contribuem para enfraquecer grupos já muito fracos.
O movimento de resistência à política neoliberal é globalmente muito fraco e enfraquecido por suas divisões: é um motor que gasta 80% de sua energia em calor, isto é, sob a forma de tensões, de divergências, de conflitos etc. E que poderia ir muito mais rápido e mais longe se...
Os obstáculos à criação de um movimento social europeu unificado são de vários tipos. Há obstáculos lingüísticos que são muito importantes, por exemplo, na comunicação entre os sindicatos e os movimentos sociais - os patrões e os executivos falam línguas estrangeiras, os sindicalistas e os militantes não tanto. Por isso, a internacionalização dos movimentos sociais e dos sindicatos se tornou tão difícil.
Há ainda obstáculos ligados aos hábitos, aos modos de pensar, à força das estruturas sociais, das estruturas sindicais. Qual poderia ser o papel dos pesquisadores? O de trabalhar para uma invenção coletiva das estruturas coletivas de invenção que farão nascer um novo movimento social, quer dizer, novos conteúdos, novos objetivos e novos meios internacionais de ação.
Tradução: Iraci D. Poleti
:: Christopher 4:51 da tarde [+] ::
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